A Dualidade da Vida
"A vida é uma oscilação entre o que temos e o que desejamos, entre o riso e a lágrima, entre a plenitude e o vazio." - Fernando Pessoa
Hoje eu olhei da janela e vi naquela pizzaria na rua da frente um grande movimento de pessoas, sorrindo e celebrando. Celebrando a vida. Uma menininha fazia uma festa temática bem colorida.
Andei pela casa, levei minha louça pra cozinha e olhei a janela do outro lado de casa, uma igreja, completamente silenciosa, exalava a morbidade. Um padre havia morrido.
A minha direita celebravam a vida, a minha esquerda lamentavam a morte.
Depois que lavei a louça, me sentei e abri as notícias... Mais uma vez um jovem que se suicidou, e ao rolar um pouco, a notícia de uma pessoa que superou uma doença quase incurável... Depois fechei as notícias e abri as mensagens: "Preciso muito conversar cm vc!" em uma das notificações, e mais em baixo uma mensagem ignorada à horas...
Com certeza você conhece esse tipo de dualidade. Estando na terra, é meio inevitável. Agora mesmo pode existir algo em sua vida completamente desordenado, desequilibrado, mas que portanto causa o equilíbrio na ordem natural das coisas. Até porque sem saber o que é tristeza, não haveria o conforto da alegria, sem o frio não haveria aquela sensação quentinha de se enrolar no cobertor, sem a morte não haveria a valorização da vida. Uma antítese libertina, eterna. No entanto, não é fácil se conformar.
Me doía muito as vezes pensar que enquanto uma pessoa chorava pela morte de alguém, outros, bem próximos inclusive, poderiam comemorar alegremente a vida de alguém. A vida é um deboche mesmo.
Mesmo com essa minha leve indignação com o mundo, percebi que é assim que muitas vezes coisas fluíram (positivamente ou não) com os anos. Essa incapacidade de se manter estagnado, a capacidade de sentir raiva pelo deboche universal, querer ser ou fazer e não poder e principalmente a incapacidade de mudar coisas fora do nosso alcance são uma dádiva. O ser humano nunca poderia ter em suas mãos a capacidade de manter tudo estável. Para a estabilidade de alguns, nasce a instabilidade de outros, e o constante equilíbrio de tudo só gera descontentamento.
Precisamos da tristeza para ouvir aqueles blues melancólicos de noite, precisamos de um amor sofrido pra ler aqueles poemas profundos, precisamos da dor para recebermos carinho e precisamos de ficar sozinhos para se sentir ainda mais feliz em conjunto... etc. Nosso sistema se sustenta dessa dualidade, infelizmente. Trabalhadores e seus patrões, pobres e os ricos, países periféricos e os países influentes...
Em um paraíso sufocante onde sempre há luz e felicidade, deve-se existir descontentamento, inquietude. Se todas as vontades do homem forem feitas, nem mesmo existimos. Tantas vezes quis não sofrer, tantas vezes queria que não doesse, me magoasse ou me deixasse com tantas expectativas... são nessas coisas que moram experiências profundas, nas vezes que quis e que não podia controlar, quando criei expectativas e elas foram completamente derrubadas ou alcançadas.
A vida na verdade, conclusivamente, é esse conjunto de sensações, expectativas, desejos que você tem a esperança de darem certo. “Estabilidade de vida” pra quê? Você sabe que pra ser estável necessita-se de um certo desequilíbrio. A vida é esse conjunto de coisas que formam uma sombra falsa, você acredita na figura, na imagem que lhe passam, na ideia ampla da vida: “Experiências, memórias e planos” quando muitas vezes são compostas de “Tédio, esquecimentos e frustrações”, que no entanto fazem parte de tudo. Quem vê no escuro, não se projeta a mão que faz a sombra, mas lá está a linda figura na parede… mas assim que a luz se acende, a figura se torna ilusão. A beleza não deixou de desistir, no entanto, não há mais fantasia, a cortina se abriu, a luz se acendeu.
Quando eu olhei de novo a festinha da menina, pensei: "hoje milhões fizeram aniversário. Hoje também vários morreram. Hoje também vários nasceram", e nada pôde me deixar mais conformada. Tadinha da menininha da pizzaria se a morte não existisse, ninguém iria comemorar seu aniversário e nem o de ninguém, pois não haveria razões para comemorar a vida. Tadinha dela, que um dia ainda vai crescer e vai perceber esses polos do mundo. E mais uma vez um paradoxo: "Eu, mais velha, observando a dualidade, e ela ainda sem saber". A ignorância e a inocência... que não são polos opostos, são mais como consequentes um do outro, mas que as vezes um tanto se atrapalham. Tadinha da menininha.
Assim como, teria dó daquele padre se a vida um dia não acabasse. Viveu fazendo o que provavelmente amava, e com certeza acreditava estar em um encontro sagrado com Deus, se sentia em paz. Uma hora o descanso eterno vem, e isso não é ruim. As vezes o fim deve ser visto com normalidade, pois viver também é visto assim.